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UFC 262: Como Charles Do Bronx superou pobreza, contrariou até os médicos e pode se tornar o próximo campeão

“A favela venceu”. A frase foi dita diversas vezes por Charles “Do Bronx” Oliveira (30-8-1) em suas quase 40 lutas do UFC certamente será repetida neste sábado, no UFC 262, quando o brasileiro de 31 anos enfrentará Michael Chandler (22-5), no Toyota Center, em Houston, pelo cinturão vago do peso leve.

Ter um cinturão ao redor de seu quadril pode representar o ápice de sua vida dentro do octógono. Mas para quem saiu da favela de Vicente de Carvalho, no Guarujá, no estado brasileiro de São Paulo, ele mesmo já se considera um campeão.

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“Imagina só, um garoto que veio de comunidade pobre, os médicos disseram que eu não poderia praticar esporte. Olha onde eu estou agora, olha tudo que tem acontecido na minha vida. Dia 15 de maio posso ser campeão do UFC. Olha isso. Como não vou falar que a favela venceu?”, disse Oliveira, à ESPN.

“Eu não tinha nada, hoje ando um pouco mais arrumado, posso comprar minhas próprias coisas. Sou grato a Deus. Já fui para os Estados Unidos, para vários lugares e não tinha nada. Eu fui pra Disney, dava vontade de chorar. Isso vai ficar para sempre, a favela venceu. Não precisei fazer nada de errado, sem precisar tomar nada de ninguém. Então pra mim é isso, a favela venceu”.

Antes mesmo de sequer começar a lutar, Charles Oliveira teve que fazer outro tipo de luta na infância. E essa envolvia sua vida.

Com 7 anos de idade, Charles começou a sentir dores no corpo e dificuldades de locomoção. Ele foi diagnosticado com febre reumática e também teve sopro no coração.

“O médico falava que ele não ia andar, que ficaria de cadeira de rodas. E a gente falou que não aceitaria isso. E ele nunca precisou estar numa cadeira de rodas. Ele tinha de 7 pra 8 anos, ele reclamava muito de dor, geralmente essas dores davam no frio. Ele desmunhecava, não conseguia ficar em pé, a gente segurava ele”, relembrou Ozana Oliveira, 49 anos, mãe do lutador de MMA.

“A gente ia nos médicos, perguntavam se ele jogava futebol, eu dizia que sim, achavam que era uma distensão, passavam remédios, melhorava a dor, depois voltava 2, 3 dias depois. Um dia deu uma crise muito forte e ele ficou mexendo muito forte, tiraram um líquido dele e mandaram pra São Paulo, foi até um estagiário, o nome dele era Samuel. Ele descobriu e passou para o médico e descobriram essa doença embaixo do tornozelo e o problema no coração. E ele começou a tomar injeção de 15 em 15 dias, Benzetacil. Tomou por vários anos. Aí começou uma vez por mês e foi indo até os 18 anos”, completou.

Dona Ozana e seu Francisco Antonio da Silva, 57 anos, pai de Charles, ouviram de um médico que seu filho não poderia praticar esporte por conta das doenças. Mas não teve como convencer a criança disso.

“O médico disse que eu não poderia fazer esporte pois eu seria uma criança ‘diferenciada’, mas como eu falei para o meu pai e minha mãe, que eu preferia morrer a deixar de fazer as coisas que eu gostava. Eu acreditei no esporte, tive fé em Deus, e ele me abençoou, como vem me abençoando até hoje. Hoje faço os exames e não tenho nada. Só tenho a agradecer a Deus e ao esporte por ter me curado”, disse Oliveira.

“O médico falou 'o problema dele é onde sustenta todo o peso do corpo, por isso estou falando para a senhora. Ele pode ficar paralítico e não andar nunca mais’. Eu falei 'isso a gente não aceita de forma nenhuma'. E graças a Deus está aí até hoje”, afirma Ozana.

Bem antes de ser faixa preta de jiu-jitsu, Charles Do Bronx tinha outras duas paixões: empinar pipa e jogar futebol na favela no Guarujá, quase sempre acompanhado de Hermison, seu irmão 4 anos mais novo e também lutador de MMA nos dias de hoje. Até que um dia, quando Charles tinha cerca de 12 anos, a arte marcial apareceu em sua vida.

“Morávamos nos fundos da casa da minha avó, e na rua da minha vó sempre tinham muitas casas para aluguel. Um dia vieram morar um casal com dois filhos e acabei ficando muito amigo dos filhos desses vizinhos e meu pai deles. Depois de um bom tempo o Paulo, que era o pai deles, que consideramos quase como um tio, pediu para nos levar no jiu-jitsu”, relembra Charles.

“A gente tinha um carrinho de lanche, ele perguntou se a gente deixaria porque os filhos deles já faziam esse esporte, eu nem conhecia esse esporte. Ele me explicou com funcionava e eu falei 'se eles quiserem ir, por mim tudo bem'. Eles gostaram, pediram, mas eu falei que não tinha condição de fazer porque era pago. Eu fui falar com o professor pra conseguir uma bolsa, nem que fosse só pra um. Eles treinaram, o professor gostou e deu bolsa para os dois”, afirmou Ozana.

Mas não seria fácil para Ozana, que trabalhava de faxineira e vendia lanches na rua, e seu Antonio, que trabalhava na feira do Guarujá, manter o sonho do filho mais velho, mesmo que as aulas de jiu-jitsu fossem parte de um projeto social e não fossem pagas. Afinal, segundo o pai do lutador, nesta época a renda familiar deles era de cerca de R$ 500 mensais.

“A gente vendia o lanche pra melhorar de vida um pouquinho. A gente vendia cachorro quente, x-salada, porção de linguiça, salsicha, pra acompanhar a cerveja. Porque a gente precisava comprar kimono, pagar a inscrição nos torneios. E nessa época eu falei 'e agora?'. Então começamos a catar papelão na rua (preço de venda hoje varia de R$ 0,15 a R$ 0,30 a cada 1kg dependendo da localização), vender lanche e assim foi indo”, disse a mãe do lutador do UFC.

“Ele (Charles) estudava em escola pública. Dificuldade a gente sempre passou. Nunca teve o melhor, mas nunca faltou pão, arroz e feijão, mas faltaram coisas melhores, tipo um brinquedo, uma comida melhor. Às vezes faltava (dinheiro). Aí tinha que levar lanche, não tinha dinheiro pra comprar comida. Ou você pagava a inscrição ou comprava um lanchinho, uma bolachinha ali e assim fomos levando”, completou.

Quando Charles tinha 14 anos, a família Oliveira sofreu uma grande perda. Paulo, justamente quem levou o candidato ao cinturão do UFC à primeira aula de jiu-jitsu, morreu baleado.

“Quando ele chegou ninguém conhecia e do nada passou fazer parte da nossa família. Pelo coração, pelo respeito com meus pais, pelo carinho que tinha por mim e pelo meu irmão. Infelizmente ele faleceu e deixou muita saudade. Tenho certeza que lá de cima ele vê a história de tudo que tem acontecido na minha vida. Eu queria que ele estivesse aqui pois foi ele que nos levou para o jiu-jitsu. Tenho certeza que ele se orgulha de ver isso acontecer, mas queríamos que eles estivesse de perto, acompanhando como sempre nos acompanhou nos campeonatos. Como sempre vibrou e torceu, dizia que um dia seríamos campeões e que iriamos dar alegria para meus pais e para ele”, disse Charles.

Charles e a família sentiram, mas seguiram em busca de vencer na vida. Com apenas dois meses de treinos de jiu-jitsu, o garoto já foi campeão do estado de São Paulo na modalidade.

E o futuro promissor de Charles Oliveira dava uma tranquilidade aos pais do jovem lutador. “Ocupado” com o jiu-jitsu, Ozana e Antonio sabiam que o garoto ficaria longe do mundo do crime e drogas que estavam ali perto, na favela.

“Os meus dois filhos, depois que conheceram o jiu-jitsu, não saíram mais de casa”, revelou o pai de Charles. “Nunca deixei de ficar olhando. Nunca fui de deixar sozinho. Falava que era para ele ficar em algum lugar que depois eu ia buscar e ele ficava. Sempre foi assim, sempre de olho, não deixava eles à toa”, completou a mãe.

E as “tentações” do crime estavam próximos de Charles, que sempre manteve os pés no chão e não tomou o caminho errado.

“Isso é o que eu mais tive (amigos que tomaram o caminho errado). Amigos que já não estão mais aqui, ou que foram presos. Infelizmente acontecem coisas assim. A vida é sua, você precisa seguir ela da forma que você quer, e infelizmente por você morar dentro de uma comunidade - não que a pessoa que tenha um pouco mais de dinheiro seja diferente - mas você que mora na m***, não tem o que comer, às vezes eles não pensam igual eu pensei, em trabalhar, em se dedicar, eles acabam indo para um lado errado, e no lado errado a gente sabe como é. Ele só tem dois finais. Infelizmente é triste. Eu conheço pessoas da vida errada, almoço às vezes com eles, mas eu sei quem eu sou, eu sei o que eu quero fazer. Eu respeito todo mundo, eu cumprimento todo mundo, tenho amigos, porque nasci dentro da comunidade, que escolheram a vida errada. Eu escolhi o esporte, sempre respeitar o próximo, querer aquilo que é meu e que não é do outro”, conta o peso leve.

Charles Oliveira pode ser uma estrela do UFC hoje, mas ainda mora próximo à favela onde nasceu e foi criado. Mais do que isso, ele ajuda a comunidade de forma rotineira em sua vida.

“Eu moro ainda em Vicente de Carvalho, moro num lugar diferente, um pouco melhor. Sempre tento buscar melhorias para a gente, mas vivo dentro da comunidade. Eu penso que a gente tem que estar onde a gente se sente bem. Você tem que estar com quem você se sente bem, não importa quem você é, o quanto (dinheiro) você vai ter, quem você vai ser. Sei de onde saí e sei onde quero chegar, mas não é porque eu quero chegar longe que eu tenho que me afastar das minhas origens”, conta Oliveira.

“Lógico, tem que ter um carro legal, ter uma casa legal, tem que usar roupas legais, ter uma condição legal, comer coisas legais. Você tem que evoluir. Então eu quero evoluir, quero andar legal, ter um carro e casa legais. Mas eu sempre vou estar na comunidade. A comunidade grita e chora comigo, não importa onde eu vou chegar, não importa o quanto eu vou ter, eu vou sempre estar na comunidade”.

Em suas redes sociais, ele faz questão de registrar as ações que faz nas comunidades em pessoa, até em época de pandemia. O apelido “Do Bronx”, gíria brasileira usada para se referir à favela, é usado desde o começo da carreira no UFC e é motivo de orgulho para o lutador.

“Eu não me vejo uma celebridade, me vejo como uma pessoa normal que pensa em ajudar o próximo como também já fui ajudado. Eu costumo falar que a favela faz pela favela. Não tem nenhum cara de fora que vai chegar e vai querer fazer, então a favela que tem que fazer pela favela. É um ajudando o outro. Infelizmente é dessa forma. Às vezes é a 'parte errada' que ajuda a comunidade. Infelizmente é dessa forma que acontece”, revelou.

“Eu tento ajudar da forma que eu posso. Tenho amigos, pessoas influentes que não querem aparecer, mas querem doar cestas básicas, então a gente vai lá e pega. Eu pego dinheiro meu e compro cesta básica e a gente doa dentro da favela. Eu faço uma coisa diferente, pois eu entrego na porta da casa de cada um porque infelizmente a comunidade é carente e passa fome, e se não for desse jeito às vezes vão três ou quatro pessoas da mesma casa e pegam três cestas básicas. Então eu prefiro entregar de porta em porta, de casa em casa. Sempre tentando ajudar as crianças, dar alegria para elas”, completou.

Seja um nocaute, finalização ou até derrota no sábado contra Michael Chandler, nada tira da cabeça de Charles que a favela já venceu.