Quando o encontro de um grupo de jovens universitários em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, marcou a criação do Dia da Consciência Negra, em 1971, Dona Celeste Arantes do Nascimento já tinha praticamente meio século de vida.
Antes do surgimento dessa data emblemática, já tinha vivido, em Três Corações, no interior de Minas Gerais, infância e adolescência pobre e desigual. No lugar onde ela nasceu, cresceu, casou e teve seus dois primeiros filhos – Edson Arantes do Nascimento (Dico para ela, Pelé para o mundo) e Jair Nascimento (Zoca) –, a praça central da cidade, até o ano passado, tinha como nome oficial homenagem a um escravagista da região. Só em 2022 virou Praça Pelé.
Assim como a maioria dos negros brasileiros, Dona Celeste teve uma vida difícil, mas feliz. Na infância, ao lado do irmão Jorge Arantes, saiu pelas ruas de Três Corações com latas cheia de jaboticabas que ela mesma colhia nos fundos do quintal de casa para vender na cidade.
Ainda moça, conheceu Dondinho, um negro elegante, natural de outra cidade mineira, Campo Gerais. Depois do nascimento dos dois primeiros filhos, ele foi jogar em São Lourenço, no chamado circuito das águas, onde nasceu Maria Lúcia do Nascimento, a terceira e última filha do casal.
Lucinha, como é carinhosamente chamada pela família, na verdade é mais que filha, é o anjo da guarda que sempre cuidou da mãe. E cuida até hoje.
No vídeo que abre esta matéria, é possível ter noção da lucidez e generosidade de Dona Celeste, em entrevista à ESPN, a última concedida à imprensa. O encontro aconteceu ao lado do filho Pelé, há 13 anos, dias antes de o Rei completar 70.
Ali, Dona Celeste abriu o coração. Disse por que não queria que o filho Dico seguisse a profissão de jogador. Confirmou a data de nascimento de Pelé, apesar de certidão original dele apontar dia 21 de outubro, e não dia 23 de outubro de 1940. Enfim, deu um show de simpatia para os jornalistas Roberto Salim, Marcelo Gomes e Nilson Pas.
As confusões com datas de nascimento na família Arantes do Nascimento não aconteceram apenas com o Rei Pelé. Recentemente, o artista plástico Fernando Ortiz descobriu na Igreja Matriz Sagrada Família, na casa paroquial, no documento de batismo de Dona Celeste que ela nasceu em 20 de novembro de 1922, e não 1924.
Não deu para comemorar...
Apesar de reveladora e relevante a descoberta do tricordiano mais fanático por Pelé, a família Arantes do Nascimento não encontrou motivos para celebrar, no ano passado, o centenário de Dona Celeste.
Primeiro, porque a matriarca da família vive há quatro anos em uma cama para cuidados domiciliares, no segundo andar do sobrado da filha caçula, próxima à praia no Canal 6 de Santos, inconsciente e completamente dependente dos cuidados de Maria Lúcia. Dona Celeste sofre de Alzheimer há pelo menos uma década e teve o quadro agravado nos últimos anos.
Além da enfermidade, em 2022, a família também não teve como celebrar o centenário porque, em 20 de novembro, o filho Pelé já demonstrava que seus dias também estavam por acabar, em razão de um câncer muito agressivo no cólon do intestino.
Maria Lúcia recorda que o último encontro entre Dona Celeste e o filho Pelé aconteceu com ele falando com a mãe no andar térreo do sobrado da irmã, enquanto a mãe repousava no andar de cima do sobrado. O Rei já não conseguia subir as escadas.
Preocupado com a saúde da mãe e dos familiares mais próximos, Pelé sempre bancou os gastos da mãe, tio, filhos e de quem precisasse de uma ajuda financeira.
Ao lado do sobrado que deu de presente para a irmã, também havia adquirido um amplo sobrado para a mãe Celeste viver com o saudoso tio Jorge Arantes. Imóvel que o Rei teve que vender recentemente por causa de uma crise nas finanças.
Antes de partir, no dia 29 de dezembro de 2022, Pelé, que ajudou tanta gente, demonstrou extrema preocupação para a filha Flávia ao falar da irmã e da mãe.
Pelé cuidava pessoalmente de todas as necessidades financeiras das duas, principalmente da mãe que com a grave enfermidade carecia de uma atenção maior em relação ao plano de saúde e gastos altos com remédios e fisioterapeutas.
Pelé foi embora, e Dona Celeste está aí, viva, aos 101 anos. A mãe do maior atleta de futebol de todos os tempos está aí. A irmã, próxima de completar 79 anos, como se fosse aquela jogadora de basquete de Bauru, casada com Davi, um ex-craque de Santos, Corinthians, Grêmio e Cruzeiro, também, vivendo junto da progenitora, com a consciência tranquila de que está fazendo sua parte em vida.
Lucinha não reclama da vida, mesmo tendo vivido um sonho de princesa, um conto de fadas enquanto o irmão Rei esteve vivo.
Hoje, precisamos colocar a mão na consciência e ver se também não estamos esquecendo aos poucos do Pelé, pois da família real certamente já não se fala mais.
Pelé já não está mais vivo para falar das criancinhas que precisam do nosso olhar para o futuro. Já não está mais aqui entre nós para falar coisas produtivas ou por vezes algumas abobrinhas, como qualquer um de nós. Pelé já não está mais vivo para visitar, vigiar e pagar o plano de saúde e os custos médicos com a mãe que hoje, segundo apuramos, são mantidos por um ex-funcionário do Rei, muito grato por tudo que Pelé fez por ele.
Que nesse dia da Consciência Negra possamos colocar as mãos nas nossas consciências e avaliar tudo que deixamos de fazer pela história e memória dos nossos negros heróis do Brasil.
Que não nos esqueçamos dos vivos, como Dona Celeste que fez e formou um Rei, como seus astros que brilham lá em cima e que não são falados aqui em terra como merecem. Didi, Dorval, Coutinho, Barbosa, Garrincha, Zizinho, Adhemar Ferreira da Silva, João do Pulo e outras tantas estrelas do esporte que jamais podem cair no esquecimento, seja nesse dia tão especial e reflexivo da Consciência Negra ou qualquer outro.