A réplica da casa onde nasceu Pelé completa 10 anos em 23 de setembro, mas a população de Três Corações ainda resiste em homenagear aquele que sempre levou o nome da cidade para o mundo. Prova disso está no nome oficial da Praça Pelé, que há mais de cem anos homenageia um coronel dono de 43 escravos.
Há um provérbio antigo que diz “O diabo mora nos detalhes”. Isso se confirmou na 15ª visita dos canais ESPN à Três Corações, no sul de Minas Gerais, cidade onde nasceu Pelé, o maior jogador de futebol da história.
A primeira investida por lá foi há 13 anos, quando descobrimos no registro em cartório civil que Edison Arantes do Nascimento nasceu em 21 de outubro de 1940, e não dia 23, data conhecida e consagrada mundialmente.
Essa história deu muito pano pra manga, algo que em 1966 o jornalista José Maria de Aquino já havia averiguado no cartório da cidade para o extinto “Jornal da Tarde”. Somente dona Celeste, mãe do eterno camisa 10, para nos esclarecer que o registro em cartório está errado. Um equívoco comum à época para tantas e tantas famílias.
Foi também na época da primeira visita à cidade, em 2009, quando preparávamos uma série especial de reportagens para os 70 anos do Rei, que conhecemos o artista plástico Fernando Ortiz. Há mais de 30 anos ele trabalha para que a cidade abrace definitivamente o homem mais famoso que já nasceu por lá.
Obsessivo com essa missão, Fernando lutava para reconstruir a casa onde a família Arantes (os proprietários eram os avós maternos do Rei) viu o garoto nascer e viver até o 3 anos de idade.
Foi uma tremenda batalha na tentativa de convencer o poder público e a população local sobre a importância desse resgaste histórico e o quanto isso ajudaria Três Corações a prosperar no campo do turismo, por exemplo.
Fernando obteve várias vitórias ao longo dos anos. Uma delas foi conseguir que o espaço onde um dia foi a residência --o local virou um terreno baldio, com duas invasões-- fosse repassado ao município.
Para que isso fosse possível, ele recorreu a Danielle Nascimento, filha de Maria Lúcia, irmã de Pelé, e advogada do Rei. Ela conseguiu fazer todos os procedimentos para regularizar a escritura.
Aí entrou em cena outra missão de Fernando. Sem qualquer imagem, planta ou referência visual de como era a casa, ele fez a reconstituição a partir das lembranças de Jorge Arantes, o tio de Pelé, e dona Celeste.
Foram entrevistas presenciais, que emocionaram toda a família, em Santos. Cada espaço, cada móvel e cada canto estava nas lembranças de Jorge e Celeste. Desde as cores do piso até os detalhes das paredes, dos quartos etc.
Com a escritura em ordem e o projeto da casa desenhado, o Ministério do Turismo abraçou a causa. A pasta liberou verba de R$ 156 mil, valor total do orçamento para a reconstrução do que um dia foi a casa de Pelé.
Nossa reportagem acompanhou todos os passos até a inauguração, em 23 de setembro de 2012, data de aniversário de fundação da cidade, com Pelé presente.
À época, Fernando Ortiz, realizado com parte de sua missão, acabou se esquecendo de nós, velhos parceiros que o apoiaram no projeto, nos deixando para fora do Memorial em meio à milhares de tricordianos, enquanto, surpreendentemente, dentro da casa havia uma equipe da TV Globo esperando, de forma exclusiva, a primeira reação de Pelé assim que ele abrisse a porta de entrada. Coisas do jornalismo...
Revisitando as raízes
Passados 10 anos da inauguração da casa encantada, a atração turística recebeu mais de 100 mil visitantes do Brasil e do mundo até o ano passado. Muitas visitas foram no ano da Copa do Mundo de 2014.
Apesar de ser uma réplica, o imóvel guarda três peças originais com mais de 100 anos. É o relógio de parede doado por Jorge Arantes, a carroça do avô de Pelé e os dois pés de jabuticabas, que ficam no quintal.
No retorno à casa neste 2022 levamos até Três Corações a sobrinha e advogada de Pelé, Danielle Nascimento, e sua filha Esther, de 13 anos. Numa viagem de mais de 370 km a partir de Santos.
Infelizmente, Maria Lúcia, que tanto desejava rever o local, apesar de ter nascido em São Lourenço, não pôde ir. Ela cuida de dona Celeste. A mãe dela e de Pelé está com 97 anos e sofre os efeitos do mal de Alzheimer.
Mas Danielle representou bem a família e, fazendo juz ao tio, derramou lágrimas, emocionada ao entrar nos quartos dos bisavôs maternos, ao rever fotos antigas e ao tocar em objetos que rementem à origem humilde da família.
Foi um dia memorável, daqueles para ficar pra história.
Essa visita à Três Corações poderia ter levado nota dez não fosse uma informação que só descobrimos depois de tantas idas e vindas à cidade real...
A praça da escravidão
Acolhedora como toda cidade do interior mineiro, Três Corações tem curiosidades interessantes. Por exemplo, a praça que achávamos que levava o nome de Pelé, tem um salão de cabeleireiro com um bar do lado de dentro.
Na praça, é possível ver uma estátua de Pelé erguendo a Jules Rimet e a marca do pé direito dele . São homenagens que datam de 23 de setembro de 1971, quando o local passou a ser chamado de Praça Pelé.
Mas esse é apenas o apelido da praça. O nome oficial está grafado lá para todos verem. É Praça Coronel José Martins, nome que muitos dos que cruzam aquela região da cidade demonstraram desconhecimento.
A reportagem buscou referências com pessoas influentes em Três Corações. Afinal, quem foi José Martins?
Segundo uma obra escrita pelo pesquisador Ronaldo Urgel Nogueira, o coronel nasceu na cidade vizinha, São Tomé das Letras, em 1816, e morreu em Três Corações por volta de 1900. Ele não era militar de carreira, mas um fazendeiro com quatro fazendas e 43 escravos. Ou seja, na praça onde pensávamos que havia uma homenagem ao maior jogador de futebol do planeta, um homem negro, o verdadeiro homenageado é um escravagista.
O detalhe é que o batismo da praça com o nome do coronel José Martins foi aprovado pelo prefeito da cidade há mais de 100 anos. Está em vigor desde 1º de janeiro de 1920.
Retratação tardia
O pedido para que o nome Praça Pelé seja oficializado foi mais uma luta de Fernando Ortiz. Ele levou a informação para a Câmara dos Vereadores e conseguiu, no início de julho, aprovar a proposta de lei mudando o nome do local.
Até 29 de julho, quando estivemos na cidade, havia ainda uma placa com o nome Praça Coronel José Martins, mas, segundo a reportagem apurou, a mudança definitiva para Praça Pelé já foi aprovada pela prefeitura.
Deve acontecer entre 23 de setembro, no dia de aniversário de 20 anos da Casa Pelé, e 23 de outubro, aniversário de 82 anos do camisa 10 mais famoso do mundo.
Outra triste constatação que tivemos, repetindo as vezes anteriores em que estivemos na cidade real, é que a maioria da população ainda é crítica ao Rei.
Muitos dizem que Pelé só foi para Três Corações cinco vezes. Outros acham que ele deveria doar dinheiro para a cidade e olhar mais para os problemas sociais por lá.
O certo é que poucos reconhecem o potencial que há em associar o nome da cidade ao de Pelé. Algo que se for usado de forma inteligente pode ser grande fonte de arrecadação para todos.
Que esse pensamento mude o mais rápido possível enquanto Pelé está vivo e pode ser devidamente valorizado, pois ele verá, seja pela televisão ou pela internet, que, pelo menos, o erro histórico na praça foi corrigido.
Agora, e esperamos que para sempre, é Praça Pelé e apenas Praça Pelé.