Não, eu não vou te responder se o certo é falar preto ou negro. Dito isso, vamos ao que interessa!
---
Talvez você esteja se perguntando ainda porque todo o cenário de esportes eletrônicos entrou num looping de falar sobre racismo - e por isso você ainda está se questionando se o certo é chamar alguém de preto ou negro…
Eu sou uma pessoa - preta - que sempre aborda questões raciais na internet. É um assunto necessário, por mais que muitos achem que a bolha gamer só devesse falar de joguinhos. É o tal do refúgio, sei lá.
Mas, de repente, Gaules também estava falando de racismo. Por motivos equivocados, fer também acabou falando de um tal de racismo estrutural. Você já ouviu falar? E até mesmo a maior organização brasileira de Counter-Strike veio a público falar sobre racismo.
Todo mundo viu a derrubada do canal Mil Grau, que ganhou fama como Xbox Mil Grau destilando discurso de ódio com a premissa de uma “guerra de consoles”. Muitas pessoas foram vítimas de “brincadeiras”.
A questão é: a execução do estadunidense George Floyd, um homem negro, foi gatilho para que o cenário de esportes eletrônicos se preocupasse com racismo. Não era pra menos, afinal, Floyd foi morto após ação do policial branco Derek Chauvin, que pressionou o pescoço da vítima com um de seus joelhos enquanto imobilizado.
Como o próprio Fer chegou a dar uma aula sobre esse caso: se Floyd fosse um homem branco, ele não teria nem sido abordado. Mas o próprio Fer é objeto de análise sobre esse assunto, afinal, ele consegue ter a leitura perfeita sobre a tensão racial que existe nos EUA, mas se revoltou quando foi chamado de racista por ter feito, veja só, um comentário racista.
"Tudo pra vocês é racismo!" fer sobre acusações de ter sido racista quando fez comentário preconceituoso em live sobre cabelos crespos
A complexidade está aí. Nada é preto no branco. O cenário de esports se mobilizou com o caso Floyd, mas se esqueceu que na semana anterior três jovens negros - tendo João Pedro como maior símbolo - foram assassinados por conta de operação policial.
É fato: o Brasileirinho não enxerga o racismo. Nem mesmo quando Gaules ou Fer chegam a falar sobre, muitos fãs não dão ouvidos. Vira questão de lacração. É pra fazer média. Será mesmo que é o mundo que está ficando chato ou só é a prova de que você precisa largar com preconceitos? Temos que procurar sempre uma versão melhor nossa a cada dia.
E para combater o racismo, veja só, precisamos falar de racismo! Até parece uma palavra proibida. O que teve de influenciador fazendo textão a respeito, mas sem mencionar racismo é um pouco assustador.
"Hoje em dia, meu amigo, o racismo que pra você aumentou... É que agora o racismo está sendo exposto" fer em live sobre o caso George Floyd
Falar de racismo no Brasil implica falar em desigualdade social. Ou seja: ter consciência raça é ter consciência de classe. O contexto histórico da construção do nosso país se dá por meio da exclusão de negros. E não é vitimismo. Tudo é política.
A chance de um negro ser pobre é o dobro da de um branco, conforme dados apresentados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) por meio do estudo "A desigualdade racial da pobreza no país", com base em dados de 2004 a 2014.
Ainda segundo apontado pelo IBGE, em 2004, 73% dos mais pobres eram negros. O índice aumentou em dez anos, já que em 2014 o número pulou para 76%. Com isso, três em cada quatro pessoas são negras entre os 10% mais pobres do país.
A realidade do brasileiro afasta gente preta do sonho de ser um jogador profissional de CSGO ou de entrar no cenário desempenhando outra profissão. Enquanto você se preocupa com redução de impostos nos games ou então se a Twitch vai derrubar o seu canal por causa de músicas durante a stream.
O cenário de esportes eletrônicos não sabe falar sobre racismo exatamente porque é um meio privilegiado. Faltam pessoas negras. E só faltam pessoas negras por conta da realidade do país. O ciclo é vicioso e cansativo.
O próprio tweet bem intencionado da FURIA sobre o caso Floyd é prova de como a cultura do meio não dá voz para pessoas negras. E expliquei tudinho de forma bem paciente.
Para se falar de racismo é preciso, primeiro, ouvir gente preta. O lugar de fala consiste em, antes de mais nada, ouvir quem vive aquela realidade para aí sim, dentro da sua própria vivência, se posicionar. Branco deve falar sim de racismo. E caso acabe tendo pensamento/fala racista, será corrigido. Não precisa ter medo. O caso do Fer é o maior exemplo a ser seguido. Não adianta você, de forma nobre, se dizer aliado dos pretos sendo que no primeiro questionamento nosso sobre racismo você já retruca e abandona a luta. Preto não precisa de caridade, mas sim de respeito. Ser antirracista não é status.
Eu, como pessoa preta, fiquei bastante desgastado com tudo o que li ao decorrer na semana passada. Frases vazias, falas sem o devido contexto. De organizações até mesmo a companheiros de imprensa. Conhecidos ou amigos. E contexto é tudo.
Qual é o contexto para, por exemplo, vocês passarem a fazer divulgação do Wakanda Streamers? Por que será que é necessária uma mobilização para que criadores de conteúdo pretos ganhem evidência? A divulgação por si só é vazia. A visibilidade é muito bem-vinda, claro, mas sem a devida dimensão racial os efeitos podem ser negativos. É preciso, realmente, falar sobre racismo. Educar sobre.
Repito, contexto é tudo. E usarei o caso do Mil Grau como exemplo. O tweet logo a seguir é inofensivo, não? Foi apenas uma celebração por eu ter a chance de jogar com personagens negros. É aquilo: representatividade é tudo.
Sim, no VALORANT só jogo com eles pq são pretos! Representatividade é tudo ✊🏽🖤 pic.twitter.com/4QcArpsU3O
— Luiz Gustavo Queiroga (@lgqueiroga) May 7, 2020
Quando menos espero, fui bombardeado por uma legião de pessoas preconceituosas que se sentiram ofendidas com a minha postagem. Fui atacado por me sentir feliz enquanto gamer preto.
E eu precisei dar o devido contexto para falar sobre o racismo que eu sofri. Só assim para que, de alguma forma, houvesse reflexão sobre o que aconteceu.
[THREAD] Pra "encerrar" a polêmica toda: a repercussão em maioria negativa deste meu tweet já diz tudo. Exaltei uma felicidade especificamente ligada a representatividade. Apenas isso. O suficiente para ataques racistas e comentários covardes, ignorantes ou desonestos. Por quê? https://t.co/vLBWEttqWB
— Luiz Gustavo Queiroga (@lgqueiroga) May 9, 2020
E, perceba você, o contexto foi o suficiente para se ter uma mobilização tamanha articulada pelo grande jornalista Ricardo Regis, preto e fundador do Nautilus, para expor de vez o ódio direcionado do Mil Grau. Deu no que deu: mexeu com um preto, a favela arrasta.
O Ricardo sentiu a minha dor.
Assim como eu senti o choro do Dz7, que viralizou por conta daquela doação falsa. Não foi um choro qualquer. Foi o choro de um streamer negro que sabe como é difícil a nossa realidade no Brasil. E ninguém deu o devido contexto. Deixaram o protagonismo dele de lado. É aquilo: racismo não dá audiência.
Ocorreu uma situação muito dolorosa com o streamer @dz7gaming__
— Wakanda Streamers (@WakandaStreamer) May 28, 2020
Eu não sei o que leva as pessoas cometerem atos como esse, streamer já toma tanta porrada pra crescer e ter sucesso, já têm tanta dificuldade para passar toda alegria em horas de live, lutar pra não desanimar... 1/2 pic.twitter.com/EWq66K79bJ
Como o cenário pode ter empatia se faltam pessoas negras para exatamente pegar esses nuances? É preciso saber dar a dimensão racial e social dos eventos que acontecem no meio. Para isso, é necessário que a bolha gamer, de fato, abrace a gente preta. A conscientização é o início da combustão.
Não sei se você notou, mas todo mundo do cenário falava de racismo sem parar na semana passada. Percebo que a “moda” está passando e cairemos no erro de engavetar esse assunto. Racismo só será pauta quando algum jogador ou streamer escapar explicitamente alguma injúria racial. E racismo não é só sobre xingamentos.
Para evitar isso, é necessário, portanto, que as pessoas se conscientizem sobre como o racismo está presente nos esports - e na sociedade em geral. É trazer pessoas pretas para ouvir sobre negritude e as injustiças sociais que estão atreladas a forma como os privilégios se dão no Brasil.
Eu, como pessoa preta, só quero me sentir incluído nos esports. Não quero ter meu cabelo invadido enquanto estou trabalhando porque você acha que tem o direito de enfiar uma caneta no meu black. Não quero ser chamado de macaco enquanto jogo. Ou de Will Smith quando chego em algum evento. Não quero ser visto como petulante por mandar o papo reto - ainda mais quando o assunto é sobre racismo. Não quero ter que problematizar sobre racismo.
Mas sei que até lá, terei que seguir dando o cara ao tapa. Enquanto alguns “aliados” entram e saem quando bem entendem da luta, eu tô no ringue todo dia levando porrada.
Jornalismo precisa ser engajado. Só assim para que haja mudanças. A transformação só acontece com conscientização. O ESPN Esports Brasil já possui esse DNA, mas reitero o compromisso. E com quem vive a realidade: você lerá análises e opiniões de pessoas do meio e especialistas. Negros. Precisamos sempre falar de racismo - assim como qualquer outro tipo de preconceito. É ter empatia e contexto, além de entender que negritude é um estágio individual.
"Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes / Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nóiz? / Alvos passeando por aí / Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes / Se isso é sobre vivência, me resumir a sobrevivência / É roubar o pouco de bom que vivi" Emicida, AmarElo (2019)
Falar de racismo é ir além de informar. Falar de racismo é acolher quem sofre calado. Quando ninguém fala, parece que estamos sozinhos. Parece que estamos errados. Mas você perceberá que não é bem assim. Te vejo no pódio, já diria Emicida.
*Este artigo não representa, necessariamente, as opiniões da ESPN.