Esta é a sexta matéria da série Lado B da Copa América, que trará, semanalmente, sempre às terças-feiras, histórias relacionadas ao torneio que acontece no Brasil em 2019. Nada de esquema tático ou entrevistas de frases feitas, porém. Aqui, o conteúdo irá muito além das quatro linhas...

Em um dos períodos mais sombrios da história da América Latina, o Paraguai encontrava alguma esperança após anos de incertezas. Alvo da segunda ditadura mais longa da história do continente, o país contrastava a forte repressão militar com a prosperidade econômica e glórias dentro dos gramados.
Sobrevivente a inúmeras crises políticas, um dos vizinhos mais próximos do Brasil comemora, em 2019, os 40 anos do título mais importante da sua seleção nacional – a Copa América de 1979 – e, acima disso, 30 anos de sua liberdade.
Instabilidade política e ascensão de Stroessner
A década de 1950 no Paraguai começou dolorida e caótica. Ainda se recuperando da Guerra do Chaco contra a Bolívia e da Segunda Guerra Civil Paraguaia, o país vivia incessantes golpes de estado liderados pelo conservador e nacionalista Partido Colorado.
Entre 1948 e 1949, o Paraguai passou por três diferentes governos. Em 1954, nova deposição. Na época, os militares, insatisfeitos com o governo de Federico Chaves – a quem haviam “dado” o posto –, retomaram o poder. Tomás Romero Pereira serviu como “ponte” para que Alfredo Stroessner, o mais jovem general da história do país, fosse levado ao cargo.
Stroessner chegou à presidência com o golpe de 1954 e conseguiu se manter no cargo até 1989 por meio do “voto”. Foram sete reeleições, sendo a primeira delas graças à ausência de concorrentes, e as demais por pleitos fraudados.
Os primeiros anos do seu governo foram fortemente marcados pelo terror e pela violência. De acordo com dados levantados pela Comissão da Verdade e Justiça do Paraguai, mais de 18 mil pessoas foram torturadas durante a ditadura, e mais de 400 foram executadas ou desapareceram.
"Nasci semanas depois do fim da ditadura Stroessner, mas minha família foi afetada com casos de perseguição. Meu próprio pai foi exilado, um tio meu foi torturado, dois outros tios chegaram a ser presos. Conheço também outras pessoas que sofreram com o regime. Isso é muito comum", afirmou o historiador paraguaio Enrique Cosp, especialista na política do país.
Durante seu mandato, o general dedicou-se à eliminação da pobreza, apesar de nunca deixar de lado os interesses dos proprietários de terras e grandes empresários. Ao longo dos anos, realizou atos de destaque como a estabilização da moeda, moderação da inflação, criação de novas escolas e estabelecimento da saúde pública.
A prosperidade e os anos de ouro do futebol paraguaio
Após anos turbulentos, uma luz pareceu surgir para na década de 70. Com os investimentos realizados na agricultura e o acordo para a construção da Usina de Itaipu, firmado com o Brasil, o Paraguai começou a prosperar economicamente.
O contrabando, porém, acabou se tornando uma das atividades de destaque, envolvendo até mesmo o próprio presidente. Foi por meio das ilegalidades que Stroessner começou a entrelaçar sua história com a do futebol paraguaio.
Osvaldo Domíngues Dibb, o mais vitorioso presidente do Club Olimpia, era, de acordo com diferentes autores, um amigo de longa data do então presidente. As relações do dirigente com o general Stroessner tinham laços familiares. A mãe de Dibb era uma amiga próxima do ditador, o que levou a um grande convívio entre eles. Anos depois, um de seus irmãos acabou se casando com a filha do militar.
Eleito para comandar o clube em 1975 – ficou até 1990, e teve um segundo período de 1995 e 2004 –, Dibb é autor da frase la gloria no tiene precio (“a glória não tem preço”), usada hoje como uma marca registrada do clube. O slogan surgiu em uma reunião com Stroessner, na qual o ditador o questionou sobre quanto teria ganho ao conquistar sua primeira Copa Libertadores.
Fora do esporte, Dibb era um empresário de sucesso em diferentes setores. Dono das tabacarias Boquerón e Montecarlo, atuava nos ramos alimentício e imobiliário, além de ser o fundador do jornal La Nación. Nascida na década de 90, a publicação foi criada para que ele se defendesse das acusações de contrabando de cigarros, comércio pelo qual ganhou fama no Brasil.
Como dirigente, o sucesso dos negócios foi traduzido no campo. Ele foi o responsável pela contratação do técnico Luis Cubilla, com quem conquistou os dois primeiros títulos paraguaios na Libertadores.
Em 1979, a equipe que bateu o Boca na final contava com ídolos como o goleiro Ever Hugo Almeida e o meia-atacante Hugo Talavera. Já em 1990, os gols de Raúl Amarilla e do artilheiro Adriano Samaniego foram fundamentais na conquista diante do Barcelona-EQU.
Na segunda fase na presidência, Dibb foi campeão do torneio continental pela terceira vez em 2002, superando o São Caetano na decisão. O elenco tinha vários conhecidos do futebol brasileiro, como o Julio César Cáceres, que atuou pelo Atlético-MG, Julio César Enciso, no Inter, e Sergio Órteman, no Grêmio.
A proximidade de personalidades tão influentes com o clube mais vitorioso do país em torneios internacionais chegou a apimentar a maior rivalidade local: Cerro Porteño e Olimpia. Na época, o futebol do país como um todo era administrado pela oposição a Stroessner, com exceção de “La O”, de Dibb.
Mesmo se mantendo em uma disputa acirrada com seu maior rival ao longo de toda a ditadura, o cenário político acabou trazendo para os clubes uma nova característica: a essência de uma disputa entre o povo e a elite.
“No início dos anos 50 ou 60, o Cerro ganhou esse apelido de ‘clube do povo’, que à princípio partiu da torcida do Olimpia em um tom de ofensa, com desprezo. Ao longo do tempo, isso acabou mudando e passou a ser motivo de orgulho para o clube”, afirmou o jornalista Aldo Benítez. “Acho que isso [relação entre diretoria e governo] acabou acentuando tudo.”
Título e influência na seleção nacional
Stroessner nunca teve envolvimento direto com o esporte – ao menos não de maneira pública –, mas deixava claro seu gosto pelo futebol. Em muitas situações, expunha suas opiniões sobre o assunto, ainda mais quando o tema era a seleção nacional.
Exemplo: a Copa América de 1979 e a grande campanha do Paraguai. Na fase de grupos, a equipe bicolor se classificou na primeira posição do grupo C, com duas vitórias sobre o Equador e dois empates contra o Uruguai (na época, a competição não tinha sede fixa, sendo disputada em jogos de ida e volta nos respectivos países).
Nas semifinais, a seleção cruzou o caminho do Brasil. No jogo de ida, no estádio Defensores Del Chaco, vitória por 2 a 1, com gols de Morel e Talavera. Na volta, no Maracanã, empate por 2 a 2, com o gol decisivo sendo marcado por Romerito, ídolo do Fluminense e que substituiu justamente Talavera, em um episódio que gera dúvidas até mesmo para ele próprio.
“O governo não teve influência na seleção, mas se escutavam algumas opiniões. O presidente [Stroessner] falava que jogadores mais jovens deviam ser colocados em campo, porque os mais velhos já não estavam respondendo. Chegou um momento em que Talavera, que era ídolo na seleção, acabou se machucando. Eu era um dos mais novos [do time] e acabei entrando no lugar dele e não sai mais”, revela o ídolo tricolor.
Romerito ainda teria papel fundamental na decisão. Acostumado a vir do banco durante todo o torneio, ele foi titular nos três jogos da final contra o Chile, marcando dois gols na vitória da primeira partida por 3 a 0, que acabou garantindo o caneco para os paraguaios (a equipe foi derrotada por 1 a 0 na volta e empatou sem gols o jogo desempate, sendo campeã pelo saldo).
Com a conquista da Copa América, a máquina estatal de Stroessner viu uma oportunidade de aproveitar o sucesso no futebol em seu favor. "A conquista da seleção foi tomada pelo Estado, sim. Os meios de imprensa eram obrigados a fazer uma grande cobertura, falar o tempo todo disso. A seleção volta a conquistar este título (havia sido campeã em 1953, pré- Stroessner, vencendo o Brasil de Djalma Santos, Nilton Santos e Didi na final por 3 a 1), mas como algo impulsionado pelo Estado, como uma maneira de esconder o que se passava”, analisa Benítez.
O adeus de Stroessner e a consequente ‘libertação’ do Paraguai da ditadura veio dez anos depois, em 1989. Em mais um golpe militar, o general acabou deposto e exilado de seu país, buscando refúgio no Brasil. Ele morreu aos 93 anos (2002), em Brasília, meses antes que o Olimpia conquistasse seu tricampeonato continental, colocando o Paraguai no topo da América novamente em sua história.