A história de um menino branco que se apaixonou pelo preto
Eu tinha uns cinco, seis anos, no máximo, quando o descobri. Só se falava dele. A sala de casa era onde mais se falava dele. Mas quando eu saía, ia para a rua, brincar ou acompanhar meu pai, onde a gente ia também praticamente só se falava dele.
Aos sete anos eu o vi pela primeira vez. Estava eu sentado num sofá no hall de entrada de um hotel de Bauru, interior de São Paulo, caderninho e uma caneta em punho, esperando que ele passasse e me desse um autógrafo. Eu já tinha conseguido alguns outros, mas era o dele que eu queria. Fiquei lá, incansável, esperando pela sua chegada. Até que ele apareceu. A porta do elevador se abriu e dele saiu aquele preto que estava todo de branco. Levantei rapidamente do sofá para ir em sua direção. Mas, aos sete anos, era um toquinho de gente, e fui engolido por uma floresta de pernas, daqueles outros que também só falavam dele e, assim como eu, estavam à espera dele. Para um autógrafo, um aperto de mão, um simples tocar ou então ser eternizado por uma Kodak Rio 400 (naquele tempo não havia celular e selfie era uma palavra que não existia no vocabulário de ninguém).

Pacientemente ele atendeu a todos. Apertou mãos, retribuiu toques nas costas ou ombros, tirou uma, duas, no máximo três fotos e autografou vários cadernos, inclusive o meu. Sim, ele me viu, perdido naquela floresta de pernas. Eu apenas olhei para ele; ele olhou para mim, assinou meu caderninho, devolveu minha caneta, sorriu e passou a mão na minha cabeça de cabelos pretos, escorridos, ao contrário do dele, que era também preto como o meu, mais era cabelo de preto, como o do meu amigo Ivo, filho do Porcino, vizinho de casa, com quem eu andava de bicicleta, jogava bolinha de gude e futebol, Ivo que também tinha um cabelo diferente do cabelo dos brancos, assim como ele, nem pior nem melhor, nem mais bonito ou mais feio, apenas diferente, assim como a cor da sua pele, da palma de sua mão, que eram mais escuras que as minhas. Pareciam mais bonitas; sim, eram mais bonitas, concluí; ou melhor, senti. E não tem nada nesse mundo que supere um sentimento.
Vê-lo foi uma sensação indescritível. Ter o seu autógrafo foi como ser reconhecido. Sentir sua mão na minha cabeça foi como uma benção.
Horas depois eu o vi novamente. Continuava todinho de branco, mas desta vez de calção e chuteiras. Meiões e uma camisa com o número 10. O contraste do preto com o branco o tornava ainda mais lindo, parecia transformá-lo em uma divindade, que contava com aquela esfera de couro marrom, que ele controlava com os pés, às vezes com a cabeça, para a consagração total.
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Eles fez dois gols. Seu time venceu por 4 a 1 o time da minha cidade, por quem eu tinha um grande carinho, mas não tão grande quanto o meu amor por aquele time de maioria preta, que contrastava com o branco, que balizou minha vida daquele dia até os atuais.
Quem era o preto por quem eu estava apaixonado? Ora, é preciso dizer? Mas se você não faz a menor ideia eu digo: aquele preto encantador, que parou guerras, alertou governos para não se esquecer das crianças, que conquistou o mundo com sua genialidade, fez reis e rainhas a ele se curvarem, bateu recordes até hoje inigualáveis, aquele preto admirável atendia pelo nome de Pelé.
Consciência Negra
O Dia da Consciência Negra é celebrado hoje no Brasil. Dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, o maior líder negro que lutou incansavelmente contra o sistema escravagista em nosso país, um sistema que ainda não desmoronou por completo, mas que, com luta e perseverança de todos nós, irá ruir completamente em algum momento.
Que não seja preciso esperar outros quatro séculos. Que esse esse muro que ainda existe na cabeça de muitos seja tombado rapidamente. Para isso é preciso que a gente se engaje, lute, todos nós, não importa a cor, pois assim como Pelé se fez rei andando de branco com uma bola de couro marrom em seus pés pretos, podemos concluir que essa é uma luta de cores em favor talvez — e por vários motivos — da mais bela delas: a preta.
A história de um menino branco que se apaixonou pelo preto
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