O dérbi de Mostar e a história de uma cidade dividida

A complexidade das questões étnicas e religiosas na região da antiga Iugoslávia é enorme, principalmente para quem não vivenciou os conflitos que marcaram a década de 1990. Foram milhares de mortes, centenas de atrocidades e feridas eternas nos países e povos envolvidos. Muitas dessas marcas continuam visíveis a todos.
Assim, é inevitável falar de futebol bósnio sem explicar a história. Impossível relatar a vitória do Zrinjski sobre o Velež por 3 a 1, no dérbi de Mostar, que aconteceu no último sábado pelo campeonato nacional, sem contar o que aconteceu nessa cidade.
Segundo relatos da imprensa bósnia na época, foram mais de 60 bombardeios das tropas croatas no centro histórico de Mostar em 9 de novembro de 1993. A Guerra Croata-Bosníaca foi considerada um conflito armado dentro da própria Guerra da Bósnia (1992-95) contra o exército sérvio. A cidade de 110 mil habitantes, ao sul do país, fica em um vale entre o Monte Hum e a montanha Velež, e não há símbolo maior para seus habitantes do que a Stari Most.
A "ponte velha", na tradução literal, começou a ser erguida pelo Império Otomano em 1557 e sua construção durou cerca de nove anos. Permaneceu intacta, sobre o rio Neretva, unindo os dois lados da histórica cidade por mais de quatro séculos, até ser destruída pelos bombardeios croatas. Sua derrubada foi algo premeditado e muito além de estratégia militar; foi uma destruição da herança cultural e religiosa da Bósnia, um país majoritariamente muçulmano.

Cerca de 2 km a oeste fica o estádio Bijelim Brijegom, com capacidade para nove mil torcedores e casa do Zrinjski, clube mais vitorioso do futebol bósnio e representante da população de origem croata no país. São seis títulos nacionais, mas nas duas últimas temporadas a taça ficou na capital, Sarajevo. A partida do último sábado foi válida pela 13a rodada da Premier League bósnia e os dois rivais ocupam posições intermediárias na tabela, bem abaixo do líder e favorito ao tricampeonato, Sarajevo.
O Velež é um clube histórico da Bósnia. Fundado em 1922, foi uma força no período iugoslavo, brigando de igual para igual com as potências da Sérvia e da Croácia. Foi duas vezes campeão da Copa da Iugoslávia, em 1981 e 86, além de ter sido três vezes vice-campeão nacional. Chegou a alcançar as quartas de final da Copa da Uefa em 1974-75, deixando pelo caminho Spartak Moscou, Rapid Viena e Derby County, antes de ser eliminado pelo Twente. Esse período marcou também o banimento, em 1945, do Zrinjski pelo governo iugoslavo, depois do clube ingressar em uma liga croata logo após a II Guerra Mundial e a criação de um estado fantoche croata. Apenas após a independência da Bósnia, em 1992, o clube foi reformado.
As arquibancadas neste sábado estavam vazias. Por causa da pandemia de coronavírus, os torcedores não podem ir aos jogos no país.
O próprio estádio Bijeli Brijeg é motivo de disputa entre os dois clubes. Historicamente, sempre foi a casa do Velež, mas com a guerra na cidade e os conflitos entre bósnios e croatas, ele foi tomado pelo Zrinjski. Na prática, Mostar foi dividida em duas durante a guerra: o leste controlado pelos bosníacos e o oeste pelos croatas. Em 1995 o Velež ergueu um estádio no subúrbio de Vrapcici e fez dele sua nova casa.

Tecnicamente, o Campeonato Bósnio apresenta baixo nível. Há bons valores que deixam a competição e se tornam jogadores importantes, como Edin Džeko, formado no Željeznicar, enquanto tantos outros grandes nomes da seleção são filhos de pais e mães que fugiram dos horrores das guerras e cresceram longe de seu país. Caso, por exemplo, de Miralem Pjanic, hoje jogador do Barcelona, que se mudou com a família para Luxemburgo quando as tensões em território bósnio aumentaram.
A vitória do Zrinjski foi conquistada com facilidade e um grande responsável por ela em campo. O hat-trick anotado pelo veterano atacante Nemanja Bibija, de 30 anos, garantiu o triunfo por 3 a 1. O primeiro gol saiu de pênalti, logo aos 16 minutos do primeiro tempo. Os outros dois já na segunda etapa, aos seis (de cabeça) e 13 (aproveitando o rebote do goleiro, após outra cabeçada), enquanto Fejsal Mulic descontou aos 36 (pênalti) para o Velež, do atacante baiano Brandão, ex-Galícia e desde 2017 no clube. Taticamente, pouca organização em campo também.
Bibija soma agora 57 gols pelo Zrinkski e se tornou o segundo maior artilheiro na história do clube. A partida marcou também a quarta vitória consecutiva sobre o rival como mandante, sequência que se iniciou há quatro anos, mas com poucos jogos: entre 2017 e 2019 o Velež esteve na segunda divisão.
O ataque a Mostar em 1993 foi liderado pelo general Slobodan Praljak, posteriormente condenado a 20 anos de prisão por crimes contra a humanidade, civis bósnios e prisioneiros de guerra. Ele se suicidou na prisão no final de 2007. A Stari Most foi reconstruída após a união de diversos países e órgãos internacionais ao custo de pouco mais de 15 milhões de dólares, seguindo ao máximo o projeto original. Mergulhadores do exército húngaro ajudaram na recuperação de pedras que caíram no rio Neretva com o desmoronamento da pérola arquitetônica otomana.
A atual Stari Most é um dos pontos turísticos mais visitados da Bósnia e símbolo de orgulho, resistência e lembrança para todos em Mostar.

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